556

Por Leide Fuzeto Gameiro

Não sabia há quanto tempo estava ali. Não sabia contar. Devia ser muito tempo, pois não se lembrava mais de outra vida antes dessa. Estava cansada. Vivia cansada, mas algo nela dizia que era preciso aguentar, suportar. Suportava as horas, os dias, os anos, a vida...

Não era seu hábito pensar sobre sua situação. Sua capacidade não lhe permitia muito raciocínio. Nem mesmo era capaz de entender quando a chamavam de estúpida. Sua resignação só não era maior que sua dor. Dor que ela mal podia entender. Doía do nascer ao por do sol, por dentro e por fora de seu corpo castigado. Nem ao menos era possível saber, olhando para ela, se tinha consciência de que sua vida fora roubada, ou se acreditava que viver era simplesmente isso. Talvez nunca nem tivesse imaginado a vida fora dali de outra forma. Talvez nem soubesse que existia a palavra liberdade.

Palavras... As palavras eram dos outros. A ela, não pertencia nenhuma. Não tinha voz. Para ela restava os lamentos sufocados, o choro por dentro, os olhos profundos e horas intermináveis de sofrimento. Se sua racionalidade permitisse, poderia nem estar mais ali, poderia ter concluído que mais valia abreviar aquele martírio do que esperar pelo inesperável. Mas não podia nem mesmo se dar esse alívio. Assim como não podia suavizar a dor com o bálsamo da esperança. Só restava viver um dia após o outro.

A solidão a havia transformado em coisa. Não tinha com quem comunicar seus sentimentos, trocar um olhar, compartilhar um momento, um toque… Muito raramente lhe era permitido o encontro com outras como ela. Mas já havia perdido, ou nunca tivera a chance de desenvolver, o jeito de se envolver. Nessas raras ocasiões olhava suas iguais e nem ao menos parecia compreender que compartilhavam do mesmo destino. Devia já estar coisificada e agia como coisa que lhe mandaram ser.

Não sabia de seu nascimento… Sempre se soube assim. Coisa. Máquina. Escrava. Não tinha um nome. Fora marcada a ferro com um número. 556. Só entendia de dor. Doí-lhe as pernas, por passar o dia todo de pé, sem poder se mover. Doía-lhes as marcas das correntes, os ferimentos causados pelas máquinas. Doía-lhe cada chute, cada murro, cada paulada. Doía-lhe cada estupro, dos incontáveis que sofria calada, sem nem mesmo compreender. Doía-lhe principalmente cada filho levado ao nascer. Nem se lembrava quantos filhos havia tido. Depois de cada estupro, cada parto terrivelmente dolorido, muitas vezes facilitado com violência, sua existência conhecia alguns minutos de sublime felicidade. Olhava aquele ser pequeno saído dela, de sua dor, sentia-lhe o cheiro, aproximava o rosto de seu corpinho frágil, limpava-lhe e por uns minutos a vida tinha um sentido, sua dor apaziguava-se… Para logo em seguida crescer tanto que as dores do corpo adormeciam.

Não havia dor maior que ter de novo outro filho tirado de si. Não entendia para onde e nem por quê. Passava muito dias lamentando, chorando a seu modo, resignada. Talvez com a lembrança do bebê sendo levado enquanto gritava pela mãe, como se entendesse que nunca mais a veria. E seu corpo, que poderia enfim encontrar algum sentido, em meio a tanta incompreensão, era reconduzido ao interminável círculo de dor e miséria.

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