O destino alheio

por Dr. phil. Sônia T. Felipe

Caminhões param à porta do galpão. Há centenas de indivíduos à espera. Esperam há dois ou três dias. Não lhes dão mais água, que antes corria pelos caninhos e era despejada sem interrupções nos bebedouros. Também já não lhes deram mais comida, que antes jorrava do teto dia e noite pelas guias canalizadoras do alimento.

Eles agora receberam, em vez da comida e da água, uma senha. Cada um tem a sua, para uma fila que ainda nem se formou, porque antes é preciso passar pelo procedimento do embarque. São milhares de indivíduos acotovelando-se, penando-se e pelando-se uns contra os outros, alguns esfolando-se literalmente na compressão dos corpos marcados para morrer. Mas ainda falta transportá-los até o abatedouro.

E é lá que agora se encontram, sem água e sem comida há quase dois dias. A razão para mais essa tortura é pouca, mas impera: no transporte não pode haver vômitos nem defecações, isso daria muito trabalho para os operadores do transporte e das instalações de extermínio. Esses indivíduos são conscientes de si e sentem as mesmas emoções que os outros animais sencientes sentem quando encurralados e esfomeados: medo, fome, fraqueza e terror diante de cada movimento ou som inesperado.

Numa praça de alimentação, bem próximo dali, centenas de indivíduos acotovelam-se também, armados de faca e garfos, numa fila mal formada na qual cada um quer ser atendido antes do outro, não importando se chegou antes ou depois desse. Querem ser atendidos, já! E estão armados de metal cortante, para enfrentar outros indivíduos que chegarão a eles na mais absoluta condição de reféns derrotados: mortos. Mas, para enfrentar esses mortos, os vivos dessa fila da praça de alimentação continuam a portar armas, brancas, mas brancas apenas de nome, porque assim que forem passadas atravessando a matéria morta, já não serão mais armas tão brancas, ficando mesmo é sanguinolentas, sujas, de cor marrom, nada iluminada.

Essa segunda cena é montada com indivíduos que não precisam comer mortos para terem saúde, mas foram formatados para crer nisso, como dogma religioso. Estão profundamente ligados no seu prato de comida e no conteúdo que costuma enchê-lo todos os dias. O conteúdo de seu prato é composto de nacos dos corpos dos indivíduos que estavam com a senha na mão à espera do caminhão que os coletou para conduzi-los à estação final de sua miserável vida de confinamento e privações: uma câmara de sangria, um tanque escaldante, uma esteira rolante onde em menos de um minuto seus corpos serão dilacerados em carnes, cuidadosamente distinguidas umas das outras, dependendo da parte do corpo na qual estavam posicionadas em vida. Já não estando mais vivas, essas distinções só importam àqueles que não se importaram em apagar nessas carnes a vida.

Se houvesse apenas essas duas filas, a dos indivíduos sequestrados e reféns das armas e a dos indivíduos que não participam ativamente do sequestro nem do abate, mas os financiam e se armam, não para enfrentar os animais em desesperada tentativa de fugir do antro no qual estão confinados, mas para lutar no espaço do prato, permanecendo fora dele, mas dilacerando em nacos ainda menores os pedações daqueles corpos daqueles indivíduos que foram forçados ao jejum dois ou três dias antes da degola, para não sujar demais o abatedouro com excrementos projetados das vísceras em movimentos forjados pelo terror sentido na hora final. Ah, se apenas houvesse essas duas filas, quanta paz poderia haver na mente dos que ocupam a segunda fila, a dos armados nas praças de alimentação. Se só houvesse as vítimas e seus comedores, não haveria peso nas consciências. Mas, estragando a paz tão almejada pelos comedores armados, há uma terceira fila.

Os indivíduos dessa terceira fila estão mostrando seus dentes, mas naquela configuração encorajadora que chamamos sorriso. Eles sorriem docemente para os armados das praças de alimentação. Creem que seu sorriso será a melhor arma para fazer os devoradores de pedaços dos mortos desistirem de seus hábitos carnistas e galactômanos. Esses da fila três pensam seriamente que a maldade dos outros pode ser diluída, bastando para isso uma atitude alheia, não uma vontade própria daqueles cérebros compulsivos. Há mais de dois mil anos os doces sorrisos são apresentados aos comedores, aos matadores, aos exterminadores, sorrisos que levam a mensagem de paz aos corações daqueles que não estão nem aí para a paz daqueles a quem devoram agora. E a história da indiferença continua, porque os de armas brancas nas mãos não estão nem aí para sorrisos, pelo menos não até que encham seus estômagos com carnes bem passadas, mal passadas, temperadas e bem cortadas com suas lâminas. Depois de fartarem-se, podem até dar atenção ao sorriso que receberam sem mérito algum. Isso mesmo! Há quem faça coisas tão hediondas que não mereça um sorriso como gratificação.

Os sorridentes se queixam de que seu esforço de demover os comedores dos restos dos corpos dilacerados pelos matadores não resulta na abolição desejada. Mas, ao fazerem suas queixas, jamais investigam a natureza e o alvo de seu sorriso. Jamais computam o resultado obtido com seu sorriso. Sorriem e sorriem para outros que já não sorriem, porque temem que seus dentes cheios de fragmentos de carnes sangrando sejam observados por alguém, o que os envergonharia, não por terem comido alguém que queria mesmo era viver e fruir, mas porque pedaços e restos de comida entre os dentes não são socialmente aceitáveis. Por isso, ao receberem sorrisos dos que creem sinceramente que os converterão para uma dieta sem animais e seus derivados, eles não sorriem de volta.

Na mesma praça (em grego seria ágora), há um quarto grupo. Sem sorriso algum nos lábios, sem qualquer arma branca, negra ou vermelha nas mãos, esses indivíduos colocam no telão as imagens dos momentos finais pelos quais os indivíduos da primeira fila passaram , antes de virarem só mais um naco de carne no prato dos indivíduos da segunda fila, aquela dos armados de armas brancas. Ao fazerem isso, convocam todos a darem um basta nessa dieta sangrenta. Não há armas, não há sorrisos. Somente as imagens que traduzem numa linguagem que ninguém quer aprender, o horror dos centros de confinamento dos indivíduos da primeira fila, o horror dos centros de extermínio deles, o horror das praças de alimentação inundadas dessa comida cadavérica. Essas imagens se juntam, formando uma teia da qual ninguém escapa naquela praça de alimentação. Quem ali estiver comendo, estará comendo esse horror.

Para espanto dos que compõem o quarto grupo, agressões e acusações partem dos indivíduos do grupo três, que não querem que os do grupo dois se vejam no espelho, querem que eles vejam apenas rostos sorridentes diante da cara deles, enquanto na ponta de seus garfos está espetado um naco da carne que era de outro, um outro com tanta sensibilidade e consciência quanto a deles, ou mais.

Em que fila cada um gostaria de estar diante do juízo final? (Essa do juízo final não tem muito apelo para muitos, não é mesmo?)

Então, vamos esquecer a Bíblia. Respondamos a uma só pergunta: caso houvesse um poder soberano decidindo por você a posição na qual será alocado, e lhe fosse dada a chance de escolher apenas uma das filas nas quais não gostaria de estar, qual das quatro filas, definitivamente, você não gostaria de compor? Se sua resposta for a fila dos que estão com a senha na mão para receber o golpe final, você entendeu a tragédia da condição animal. Não mande os animais para uma fila na qual você jamais seria visto, se dependesse de sua vontade. Você é um animal com tanto horror da morte quanto todos os que foram mortos para virar nacos de carne em nossos pratos, incluindo os natalinos.

Fonte: ANDA - 25.12.2014
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